sexta-feira, 8 de maio de 2009

ATÉ LOGO COMPANHEIRO


A respeito dos versos do poeta russo Serguei Iessiênin.
Dedico esse texto aos companheiros desgarrados:
Josenilto Novaes
Hélio Konishi
David Cavalcant
André Dutra
Os anos voam como borboletas amortalhadas; insones, com sua marcha suave, mas inconteste entre a solidão que destroça os planos humanos: os ápices vertiginosos. Tudo se rende ao seu farfalhar de asas que enche de sombras nossas casas. Olhamos pela janela e vemos a impossibilidade caminhando lentamente à nossa porta
Tantas vivências.
Os anos de universidade foram sofridos. O desemprego, as obrigações militantes contra as obrigações acadêmicas. Porém as dificuldades eram compensadas, pois a amizade reconfortava. Nós éramos tão unidos que pensávamos quase que de forma igual. Muitos nos confundiam e constantemente trocavam nossos nomes.
Meu amigo, rechonchudo, com olhar absorvente e sarcástico. Caminhava como um velho descompassado. Mas sorria sempre. E isso lhe dava um ar bonachão. Era esse o seu elemento surpresa. Uma vez desacreditado, quando debatia numa assembléia, começava a crescer como uma massa disforme que se transforma num animal feroz. Ai seus olhos miravam o fundo de nossas almas; e então, sabíamos não ter mais segredos. Mas ai é que está. Nisso ele sorria bonachão. Sorria, pois seria amigável e não iria revelar nossos segredos mais íntimos. Com isso, todos fingiam agradecimento. Poucos foram os loucos que ousavam retrucá-lo.
Apresentar-se num grupo, certo de suas obrigações e expor fraquezas como fome, falta de dinheiro para passagem de ônibus; uma tosse profunda etc. nunca seria justificativa. Seria um desvio pequeno-burguês e nisso acreditávamos religiosamente.
Eu, também rechonchudo, pensava nos absurdos que fazíamos, mas cria que era um esforço em prol da revolução social. Eu tossia muito. Tossia e pigarreava. Pensava que aquilo não tivesse mais jeito. No entanto era jovem e viril. E essas coisas pueris não me abalavam.
.
Sabíamos cozinhar e esse era nosso diferencial. Não íamos a restaurantes, mas conhecíamos a arte de cozinhar. Por isso socialmente saímos da indigência em que vivíamos entre os nossos. Convidávamos companheiras militantes e essas não recusavam algo quentinho, chá de Jasmim, leitura de poemas dos escritores revolucionários e sexo libertário.
Recordo que certa vez em que estávamos famintos, juntamos todas as moedas que tínhamos. Procuramos dentro do ralo, sob as camas do dormitório, nas frestas no canto das paredes. Foram dezenas de minutos, com fé que conseguiríamos a quantia necessária.
O ralo nos salvara.
Compramos um pacote de macarrão, queijo ralado e dois ovos. Até hoje é meu prato predileto: macarrão ao alho e óleo e um ovo suculento derramando a gema por cima.
Até hoje essa lembrança me dá água na boca.
No caminho da cozinha ao dormitório, uma poça d’água estragou nossos planos. Eu que carregava a panela de macarrão caí. Tudo derramado no chão. Impossível.
O impossível ocorre.
Por vezes como mágica.
Mas ali não era o caso.
Chorei como criança.
Por quê?
Sei lá! Sentia culpa, principalmente pelo meu amigo. Sabia de seus padecimentos e de quanto aquele almoço suado era significativo. É o valor daquilo que materialmente não é notado.
Risadas.
— é mocinha?
Pegou todo o macarrão do chão. Suas mãos eram redes de pesca marinha. Pôs tudo na panela novamente. Continuou rindo.
— na guerra revolucionária seria uma iguaria! Pensei que ele diria. Mas não disse nada, apenas continuou rindo.
Fomos ao alojamento. Lá fora escurecia. Ligamos a vitrola e ouvimos Pixinguinha, Peterpan... depois tomamos chá de Jasmim. Descia ao paladar em ondas mornas. Muito aromático, aquecendo as têmporas, limpando as narinas sofridas pelo frio das panfletagens madrugada adentro.
Chá de jasmim era um luxo.
Mas não era pequeno burguês não! Fora furtado dum mercado da burguesia. Antecipávamos um pouco a revolução. E isso nos enchia de orgulho verdadeiro.
Não! Naquele momento ninguém era mais feliz do que nós. E isso também era verdadeiro.
Lá fora já era noite.
Estávamos aquecidos: pelo pão que partilháramos; pela irmandade firmada mais uma vez.
Isso também é verdadeiro e atemporal. Assim como as estrelas. Brilhante e efêmero como o êxtase do orgasmo.
...
“vai, deixe-me lembrar
dos tempos de rapaz no Braz
as noites de seresta
casais de namorados...”
Os anos voam como borboletas amortalhadas; insones, com sua marcha suave, mas inconteste entre a solidão que destroça os planos humanos: os ápices vertiginosos. Tudo se rende ao seu farfalhar de asas que enche de sombras nossas casas. Olhamos pela janela e vemos a impossibilidade caminhando lentamente à nossa porta.
— conosco não; lá!
Mas a senhora assopra o vento frio e sombras ao que até então achávamos. Pode demorar, mas logo, sabemos que é nossa a visita, e que ninguém poderá atendê-la por nós. Ricos ou pobres. O véu amortalhado dos anos não escolhe classe social para encobrir com suas sombras desconhecidas.
Até logo, até logo, companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.
Com essas palavras extraídas do original de Iessiênin, meu amigo se despedia dos mais íntimos. Imagino o cortejo de Iessiênin também tenha sido triste assim.
Imagino, pois sei que a certeza... é.. como os anos, pigarreia a garganta; arrastando ferros na carne. Que cada vez mais dorida, silencia-se.
Porém, não recitou a segunda estrofe:
Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faça um sombrolho pensativo.
Se morrer,nesta vida, não é novo.
Tampouco há novidade em estar vivo.
Imagino que não tinha mais forças para isto.
Imagino, pois sei que a certeza...
À sombra amortalhada do tempo ido, estes versos dramáticos, escritos com sangue, suspendem a dor da tragédia e transformam-se em puro lirismo. Por vezes, de encantar mocinhas; por outras, eclodem do passado como ritornelo ao finale.
O tempo é assim.
Ao menos o reles tempo humano - que é o único que ouso dizer que conheço.
Esses versos se Serguei Iessiênin, transformaram-se a fumaça de lampiões e velas em que foram lidos (assim como tantos outros: esconderijo emoldurado à palha dos colchões, que, no entanto, lhes reservou um destino mais humano que as frias prateleiras do esquecimento) conferiu-lhes uma textura agridoce que deixou o papel impregnado de cheiros e vida. Laivos imemoriais.
Ao paladar, algo entre a compota da avó e os embutidos defumados dependurados sobre o fogão de lenha.
Por décadas esse tratamento de conservação e resistência, sábio, como muita coisa que é criada pelo improviso do povo, deve ter lhes emprestado uma áurea cinzenta.
E nós que choramos e rimos com Chaplin, o homem do povo, franzino e esperançoso, imediatamente lemo-os líricos. Assim foram conservados em nossas memórias.
“Até logo, até logo, companheiro...” hoje são versos líricos, pois o tempo emprestou-lhe aromas, textura e história; sabiamente maculados e (ouso) reescritos como uma última esperança de dignidade.
O tempo é a certeza em si: indomável como o alazão selvagem, vai ao precipício quando corre o risco de ser domado.
Iessiêenin era um alazão.
O gene eqüino da liberdade tardou um pouco mais, mas também não faltou a Maiakóvsky, o urso.
O tempo é assim: muda nossas certezas.
Ainda na universidade, tínhamos em pouco tempo uma teoria que dava conta de entender tudo; supúnhamos. Essa arrogância era já imitada de outros, mas funcionava bem. Dava-nos importância, sem que sofrêssemos rumo a algum aprendizado pela vida. Entendíamos tudo, desde o funesto papel das religiões, das pessoas que as partilham, até o inevitável futuro da humanidade.
Éramos jovens socialistas.
Chorávamos ao ver uma injustiça ao proletário e consolávamos com a breve vingança. O vinho também servia, temporariamente, para refrear nossas consciências religiosas.
Despedir-se de um amigo não é fácil. Para um revolucionário é mais duro ainda: é a certeza do não reencontro, por princípio.
Até breve companheiro.
Pedro da Mota Pereira

[I] Tradução de Augusto de Campos.

Para quem desejar ouvir Jésse, voa liberdade:
Para quem desejar ouvir o hino da internacional comunista, para quem não conhece ouça-o. é Belíssimo:

http://www.youtube.com/watch?v=lyQPA9INPfs


novo link enviado pelo André

http://www.youtube.com/watch?v=qZ4rWoPpVSU&feature=player_embedded

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