terça-feira, 28 de abril de 2009

Primeiros Despojos



Não tolhas de tuas mãos a qualidade do afago.
É de sua natureza, postas nos ombros alheios
Cobrir em véu as máculas do tempo.

Não tolhas de tuas mãos a qualidade do afago.
É de sua natureza, postas ao rosto tímido,
a espera do beijo - ainda que sonhado.

Não tolhas de teu corpo o encontro com outro corpo.
É de sua natureza o perder-se em susto.
Escrevendo a história da existência a loucura.
Não te prives de perder-te, quando não tiver mais planos.
É da natureza humana, no contato, o encontro;

De outras casas, rios e mares.

Ainda que não haja mais casas, rios ou mares a tua espera.
Mesmo que sequer tenha existido.

E te depares em correntes de cetim em meio a jocosas negações:
“Não sois Ulisses! E tua Ítaca foi apenas uma história de outro inventor”.
II
Mesmo na ausência, mantenha a distinção.
É teu orgulho pessoal que não fere ou mata;
Mas evita que denuncies tuas tristezas.

Escutai sempre conselhos
Com olhar de perdão e a boca mais de receber que doar.
Ainda que a ti a fatalidade já se tenha revelado.
III
Acordo e sinto porções de minha matéria ainda viva.
Assim durmo a procura de palavras e sonho que sou um errante
que esqueceu o próprio nome, o Buda e um amante em pleno gozo.

Sei que paises não mais serão descobertos.
Mas não importo; posto que não estou febril
e os sons me despertam os sentidos.

As palavras se escondem não-sei-onde.
Mas sonho com lustre, abóbadas e candelabros...
[a mirá-las.
Se desperto sumirão.
Pois estão nas sombras de um bosque;
atrás duma igreja ou muro frio;
‘Á sombra de uma rapariga em flor’ que eu mesmo não vivi.

Epílogo:
Erram os dicionários.
Pois esquecimento não é o contrário da lembrança.
Ambos são apenas sonhos; que se completam.
Para encantar o sono
dos povos,
dos seres,
todos,
e o meu.

Por isso agora escrevo!
Jogo uma garrafa ao mar, com mensagens à posteridade.
Que
Do
Auge
da minha loucura, sei que não existe.
Posto eu mesmo tê-la criado.

São Paulo, 10-11-06.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Horóscopo


Coisa tão despropositada lembrar disso agora. Voltei. Aqueles lapsos. Parecia maconhado. Mas não havia fumado ou será que... Não, não fumei. Minhas mãos doíam. A noite começava a chegar. Voltar não dava: a distância entre as pedras que subi era grande: fatalmente cairia.
Lembro-me de quando estava sem nenhum; matando cachorro a grito! Só quem passou sem ter o que comer sabe. Meu amigo e eu ligamos para o supermercado, diretamente do laboratório do Dr. X. Pedi que enviassem seis cestas-básicas a um endereço da moradia estudantil. Seria uma doação da universidade para uns alunos pobres etc. que mandassem a conta ao laboratório do qual a ligação era efetuada e tal.
— Parabéns professor Dr. X! Precisamos de cidadãos assim...
— Desliga logo essa porra! Meu amigo sussurrava rindo.
O céu esmaecia. Eu percebia que os pássaros-padre começavam a se assentar ao meu lado e acima - suficientemente perto para percebê-los; suficientemente longe para tocá-los.
Certa vez, nós demos anestesia num pássaro e lhe assamos as pernas no fogão do laboratório. Havíamos lido A Causa Secreta e nos achávamos os caras. Crianças e jovens tem atos maus, no entanto, poucos são os casos em que possuem essa maldade como estratégia de vida.
Fedia.
— Duvido.
Mordi um pedaço o pássaro espantado não sentiu a dor, mas gritava, ainda vivo.
Vomitei tudo.
O gosto volta como regurgito à minha boca. Fiz força e cuspi lá em baixo.
Acima ainda faltava um bom pedaço para escalar e escurecia. Não fossem aqueles lapsos, subiria?
O vale pertencia à universidade, sempre acampávamos lá; com bebidas e um fuminho. As meninas iam preparadas: remanescente de bicho-grilo (sem frescura).
Alguns diziam que eu fazia aquilo para me exibir. Não era. Mas sempre depois de uma boa trepada como novidade, eu estava ali. Exatamente ali, no meio do penhasco, escalando-o virilmente. Em segundos me perguntava o que fazia ali. Faltava muito ainda para terminar a escalada. Mas a vida era intensa e assim eu subia o resto sem ao menos dar conta do que fazia.
Quando pensamos comprar nossa casa (pré-fabricada), decidi-me por esse vale.. Porque nesse vale? Havia me prendido a ele, sabe-se lá porque. Há laços estabelecidos não sei onde; no futuro; no passado. Não sei com quem. Quando jovens, a energia de vida não permite que percebamos; quando na meia-idade, são os compromissos: trabalho, contas. Fazem com que nos esqueçamos desses laços. É como uma paisagem vista de um trem em rápido movimento. Miramos a janela e a paisagem. Um quadrado atrás do outro. Tudo igual. O mesmo do mesmo.
Hoje sei que cada quadrado portava identidade própria. Um com cerca e rezes; outro com pássaros-padres sobre um mourão de cerca apodrecida. Tudo era e não era. O movimento existia, hoje sei.
Tentara mais um degrau. Uma pedra se esfacelara em minha mão. Parei. Estático até não ouvir mais aquele zumbido suplicante rumo a um pequeno infinito inviolável. Minha incontinência urinária me trazia pro presente. Estariam esperando por mim? Iriam se preocupar? Quem?
Ao tempo em que situamos nosso lar, ali, naquele vale, minha filha mais velha havia ido estudar na Europa. Eu era apenas um professor de ensino público. Orgulhava-me dos concursos que havia passado e só. Não segui carreira acadêmica. Meu amigo biólogo também não. Antes de terminar a faculdade começou a aparecer em quadros de programas televisivos, mostrando física portátil: bobagens pseudo-científicas , eu dizia com desdém: isso não ensina nada!
Disse isso muitas vezes entre a certeza de professor e certa inveja do sucesso dele. Hoje ele tinha seu próprio programa de tv. Pensei em procurá-lo. Porém... e se ele fizer pouco caso? Melhor não! Meu orgulho próprio não me permitia.
Éramos eu, minha cachorra velha dorminhoca, minha esposa e minha filha adolescente, minha caçula. Ela chorou um pouco por causa da mudança. Mas era boa demais para objetar empecilhos. No entanto, ao cair no sono, acordava constantemente gritando, no meio da noite. Assustada com os pássaros que se sentavam ao redor da casa - sobre o teto nenhum. Eram pássaros negros. Centenas. Mudava o clima, mas eles estavam lá; dia sim, dia sim. Cada um no seu lugar: conhecíamo-los um a um. E eles a nós.
Todos: obsessivos.
— Filha... são todos negros porque são pássaros-padres e rezam por nós. Ela ria. Mas não era natural, feito cascata pequena. Ria para me agradar. Há alguns anos deixara de rir de verdade de minhas graças. E eu o sabia em silêncio. A cada dia mais em silêncio.
Meus pés caíram. Ainda olhei minhas mãos. Segundos ou séculos? Minhas unhas quebradas, envoltas em sangue, escorregavam Sentia o ar frio nas minhas costas. Violento e frio. Via tudo se afastar muito rápido. Mas, ao mesmo tempo, em câmara-lenta, ao som de uma cantata de Bach.
Na certa não caia, seria mais um lapso. Aposto. Daqui a pouco perceberia que ainda estava seguro e, conforme as outras vezes, conseguiria terminar a escalada. De outras, sequer me recordava daquela vacilação. Seriam outras vezes ou aquela mesma, repetida ao infinito: um jogo de espelhos borgeano?
Sim, apenas mais um lapso, pensava. Mas o vento era forte. Ensopado de suor eu começava a sentir frio. O frio intensificava-se. Mais. Mais: pegaria uma pneumonia. Fatalmente.
Quando pequeno, lera num jornal o meu horóscopo. Dizia que meu fraco era o sistema respiratório. Desde então foram cirurgias corretivas; corretivas das corretivas etc.
— Precisa emagrecer, senão perdemos sua cirurgia!
Perdemos? Nós?
Enquanto o Doutor dizia aquilo, em minha cabeça passava-se um devaneio: eu estava escalando e caia. Onde estava?
Voltei. O lapso acabara.
— não fique mais do que um mês sem vir aqui. Na saída marque o retorno com a secretária para depois do feriado. Adeus.
Porque sempre dizia adeus?
Quando eu voltava lá no consultório era porque estava em meio a uma crise, meses depois.
Ainda sim, até ontem, sempre fui visitá-lo, não mais como paciente. Agora como parceiro de xadrez, licor, charuto, maconha.
— você não pode! Esquece essa história de morfina.
— Ora... Começou o Doutor.! Abaixava a cabeça como se ouvisse algo triste, mas que não era com ele: — vamos jogar. Mas sempre perguntava pelo tratamento. — vai bem. Não queria preocupá-lo. Mas sempre as pneumonias.
E agora? Pegaria mesmo outra pneumonia e seria das fortes, já o sabia.
Um pássaro fica para trás. Tudo fica para trás quando estamos febris.
Sentia como se estivesse viajando num trem, mirando as janelas, a paisagem recortada. Como fotografias de cinema. Paradas e eternas, sem movimento. Ficou para trás a imagem dum pássaro-padre pousado sobre um mourão de cerca apodrecido.
Pedro da Mota Pereira, abril de 2007.

domingo, 26 de abril de 2009

Chove ...


...

Chove.

E o vento frio atravessa soprando

um silêncio sustido

Dual, travestido, de angústias vindouras.



Chove.

E dos espelhos d’alma

Vislumbro com calma [Lá fora

a saudade

[que olha meus olhos molhados]: parada



Chove.

E em tal distância

qualquer desejo de felicidade espanta

primavera dos anos de antanho.



Chove.

E as cúrias vãs da memória

[sentado em quase embaraço]

dissolvem-se como torrão de açúcar

em meu copo de chá.






Lição de Pardal

Escolher as praças
Das praças, as velhas
Árvores, o chão úmido

Das proporções a menor
Sem cheiro ou espanto
Sem nome ou eu sou.
.
Dois Córregos, S.P.